O conto Bruxedo de Miguel
Torga
(Adaptado por Salte Valente - equipa BE)
À
Janela
Joana
“Melra”: ( À janela da casa e a falar
sozinha, toda furiosa)
_
Eu posso perdoar muita coisa, pois sou uma pessoa temente a Deus, menos que
falem mal das minhas filhas! (Joana parou de falar para ver as horas e
depois continuou)
_
As minhas filhas estão casadas, e muito bem casadas, não são como as da Vila
Velha! Essa Gomes tem pelo na benta, mas eu nunca lhe tive medo! Parece que a
coça que lhe dei não lhe serviu de emenda, ai não, não…
(Sai da janela e vai para a varanda onde
pega na meia e começa a remendar. E prosseguiu com o monólogo)
_
Já lá vão quinze anos, mas eu nunca esquecerei!
Leopoldina:
(Que
passava na rua, mas a tempo de ouvir a última frase)
_ Ó tia Joana, o que é que você nunca esquecerá?
Joana:
( Joana para de remendar e responde à vizinha, cruzando os braços)
_ A malha que dei àquela serigaita da Gomes. Mas uma
coisa é certa…( suspende a fala) depois daquele maldito dia, nunca mais fui
a mesma pessoa…
Leopoldina:
_ Lá isso é verdade!...Anda tão desolhada, mulher!...
Joana:
_ Pois é... Tenho dores no corpo, não tenho nenhuma
vontade de comer, quebrada…
Leopoldina:
_ Ó D. Joana, mas a senhora sempre foi rija como o aço!
Quando paria os filhos era um ai que lhe dava, sempre trabalhou, comeu e bebeu
como um homem. É uma mulher de armas!
Joana:
_ Lá o que tenho, Deus é que sabe. Agora que não é coisa
boa, não é. (E prosseguiu meio encolhida na sua doença) _ Dói-me tudo, não
posso ver a comida, sinto palpitações… Vou entrar que o meu Inácio está à minha
espera. (Dirige-se para a cozinha)
Leopoldina:
_ Vá com Deus, mulher, e não ande a malucar com coisas
que não existem…
Na cozinha
(Já na cozinha, Joana
sentiu-se mal)
Joana:
Ai, Inácio, vem depressa que me
está a dar a breca, vem depressa…( desfalece )
Inácio:
(Vindo de outro compartimento da casa)
_ Ó mulher, que flatos são esses, não entendo?
Joana:
_ Eu não sou mulher de flatos, de achaques, ou diabo que
o valha! (protestava) Quem pariu doze filhos como eu pari, sem um
desejo, sem uma palavra que se ouvisse na rua, não é de flatos!
Inácio: Anda comer que o teu
mal é fome! ( Inácio senta-se, ao mesmo tempo que dá um jeito na mesa: muda o pão,
a caneca do vinho, abre a panela e enche as malgas do caldo. Come e bebe um
pouco. E continuou)
Olha que eu nunca me
engano naquilo que eu digo…
Como
a mulher não havia meio de se sentar, repreendeu-a)
_ Ó mulher, senta-te e
esquece essas maluquices. Come o caldo e bebe uma pinguinha que te vai fazer
bem. Enche-me esse bucho, mulher, que estás branca como a cal!
( Joana senta-se e come um naco de pão e diz.
Pausa. Depois prossegue)
Joana:
_ Ó homem, ando cá a malucar umas coisas…Até já me
lembrou…Cala-te boca…( pega na malga do caldo e come umas colheradas)
Inácio:
_ O quê?
Joana:
_ Que me fizessem qualquer bruxaria…
Inácio:
( Deixa de comer)
_ Deixa-te de maluquices e vê se tens propósito! Só
faltava mais essa!… Valha-te Deus!
Joana:
_ Eu sei lá! Sinto-me tão cansada, tão moída…
Inácio:
_ Já te disse que são flatos. Não é mais nada. Não há
feitiços nenhum. O povo ignorante é que acredita nesse e outros disparates. Se
pusessem os olhos nas pessoas de certa categoria… nunca se ouviu dizer que a
senhora Fulana ou o senhor Sicrano andassem com o diabo no corpo. Só a gente
que não tem instrução é que acredita em bruxedo. Palavra de honra! (diz
em tom de descontentamento)
Joana:
_ Diz-lhe que não. A Deolinda também começou assim, que eram maleitas, que eram febres
intestinais, que era sífilis, e vai-se a ver, tudo mandingas da Leopoldina.
Inácio:
_ Ah!, Ah!, Ah! Ó mulher, coitada da Leopoldina! O poder
dela é tanto como o meu! E que motivos deste tu à Leopoldina para te fazer mal?
Joana:
_ A ela nenhuns.
Inácio:
_Então, já vês…
Joana:
_ Pois olha que não se me tira do pensamento…
Inácio:
_ És teimosa!
Joana:
_ Serei. O pior é o resto…Seco-me de dia para dia…
( Ainda na mesa a
servir-se do que lá está, Inácio coça a cabeça)
Inácio:
_ Que tu te estás a sumir, é bem verdade, mas a
Leopoldina é que não é para aqui chamada!
Joana:
_ Por incumbência da Gomes, homem. Tão certo como Deus
estar no Céu!
Inácio:
_ Lá vens tu com enredos, mulher! Trata de dormir, e
amanhã vai ao Paliteiro que te venda sal amargo e toma-o. Isso são flatos ou é
estômago sujo.
Joana:
_ Como eu tive aquela pega com a Gomes e ela agora não
sai de casa da Leopoldina, aqui-del-rei que ando enfeitiçada. Tenho a certeza!
Até dou conta quando me estão a coser a andilha! Acordo de noite com os
alfinetes cravados no corpo!
Inácio:
_ Valha-te um burro, mulher! Reloucaste. Depois de velha,
reloucaste!
Joana:
_ Eu sinto! Eu sinto elas picarem o mono.
Inácio:
_ Que mono?
Joana:
_ Elas fizeram um mono de pano, e a bruxa faz malefícios,
judiarias nessa figura da pessoa a desgraçar.
Inácio:
_ Estás num lindo estado, sim senhor! E tão sã que tu
eras do miolo!
Joana:
_
E é que dão cabo de mim, as coiras! Uma agonia, uns apertos no coração…
Inácio:
_ Bem, se até amanhã não melhorares vou-te buscar o
curandeiro da Azoia. Que hei de eu fazer! Assim é que não podes ficar. E que
venha a Emília tratar de ti.
Joana:
_ Vai lá chamar esse tal curandeiro.
(Inácio sai. Joana
continua sentada a cismar e a comer. Depois entra o Curandeiro de Azoia e
Inácio )
Curandeiro
de Azoia:
_ Ora bom dia! Esta é a desgraçada que está possuída pelo
demónio?
Inácio:
(
Chega-se junto ao Curandeiro e segreda-lhe ao ouvido, sem que a mulher deia por
isso)
_
Não diga isso, homem!
Curandeiro:
-
Ah, pois… Vamos, então, ao que
interessa. Em primeiro lugar, dinheirinho na mão, senhor Inácio. Não vá o Diabo
tecê-las e a coisa dar para o torto, saio daqui de mãos a abanar. É o que eu
sempre digo: “ Dá cá, toma lá” (Estende a mão e vira a cara para o lado
enquanto o senhor Inácio lhe dá a paga)
Curandeiro:
_
Assim está melhor! Agora sim, vamos tratar da maleita. Vira, volta a virar, (
Dirige-se a Joana)
D. Joana, você
realmente tinha razão? Ai este sexto sentido das mulheres! ( pausa) São duas
mulheres…
Joana:
_
Pois eu não te disse, Inácio, são aquelas duas malvadas…Seco-me de dia para…O
meu Inácio não acredita em mim…
Curandeiro:
_ Mas devia, pois a senhora está
possuída pelo diabo que a está a secar…Eu sinto…Elas…elas fizeram um feitiço…oiço
as malvadas a rirem-se de si …(começa a tremer como se estivesse a sentir
a presença de algo sobrenatural. Depois abre os olhos e encara a D. Joana que
olha para ele sem surpresa quanto ao que ele lhe vai dizer)
_
Um trabalho feio, sujo…mas eu vou
receitar-lhe uma garrafa deste milagroso licor, e vai ver que vai ficar rija
que nem aço. Vou indo que já se faz tarde. Ainda tenho que pregar o sermão
noutra freguesia…
(O Curandeiro entrega a garrafa,
cheira o dinheiro e sai apressado)
_ Este já está no papo, o
resto são conversas! (Aparte)
(Inácio acompanha o
Curandeiro. D. Joana toma o licor, mas de nada adiantou. Na cozinha Joana chama
por Inácio que chega logo a seguir, queixando-se)
Joana:
_ Inácio, estou cada vez pior! O licor do pantomineiro do
curandeiro não fez nada. Bota-te à serra à casa da santa, se me queres viva!
Leva-lhe uma camisa minha e conta-lhe tudo.
Inácio: (Aparte)
_ Vou mas é à Vila consultar o Dr. Amaral. (Aparte)
Santa! Santa estás tu da caixa dos pirolitos. Vai deitar-te que eu vou já ter
contigo.
(Reclama o senhor Inácio para a
mulher. Joana permanece na cozinha, enquanto o marido dá um jeito às cadeiras
da mesa da cozinha. Nisto, Joana dá um grito)
Joana:
_ Ai santo nome de Deus que eu morro! (Joana parece que vomita. Inácio
vai em seu auxílio)
Inácio:
_
Ó mulher, vou dar-te uma pinga de chá de cidreira que está aqui na cafeteira.
(Joana,
cheia de calores, começa a abrir a camisa que tinha vestida. Inácio dá-lhe o
chá) Este chá de cidreira é remédio santo! Acalma, e
deixa de malucar com sandices!
(Joana bebe o chá e quando
vai a pôr-se a pé sente-se novamente mal)
Joana:
_
Ai, que aquelas grandes putas atravessaram-me a alma! Ai! Que eu sinto-me
estrafegada! Ai Jesus, que eu morro! Ai…
Inácio:
_ Sossega, mulher, sossega! ( A tempo de agarrar nela no seu regaço) _Valha-me Nossa
Senhora! (A mulher ficara-se-lhe nos braços)
(Doido, sem um gemido que lhe
abrandasse o desespero, correu para a rua, desvairado, à procura de um socorro
impossível. Abriu a porta e, mal a puxou, caiu-lhe aos pés um mono de farrapos
todo cravado de alfinetes e com um prego espetado no sítio do coração.
Inácio:
_
Afinal, não eram flatos, bem dizia a minha Joana!
(Exibe o mono com o prego pregado
no lado do coração)
TORGA,
Miguel _ Contos da Montanha, Publicações
Dom Quixote.
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