quinta-feira, 13 de fevereiro de 2020

BRUXEDO - adaptação

O conto Bruxedo de Miguel Torga 
(Adaptado por Salte Valente - equipa BE)

À Janela
Joana “Melra”: ( À janela da casa e a falar sozinha, toda furiosa)
_ Eu posso perdoar muita coisa, pois sou uma pessoa temente a Deus, menos que falem mal das minhas filhas! (Joana parou de falar para ver as horas e depois continuou)
_ As minhas filhas estão casadas, e muito bem casadas, não são como as da Vila Velha! Essa Gomes tem pelo na benta, mas eu nunca lhe tive medo! Parece que a coça que lhe dei não lhe serviu de emenda, ai não, não…
 (Sai da janela e vai para a varanda onde pega na meia e começa a remendar. E prosseguiu com o monólogo)
_ Já lá vão quinze anos, mas eu nunca esquecerei!

Leopoldina: (Que passava na rua, mas a tempo de ouvir a última frase)

            _ Ó tia Joana, o que é que você nunca esquecerá?

Joana: ( Joana para de remendar e  responde à vizinha, cruzando os braços)

            _ A malha que dei àquela serigaita da Gomes. Mas uma coisa é certa…( suspende a fala) depois daquele maldito dia, nunca mais fui a mesma pessoa…

Leopoldina:
            _ Lá isso é verdade!...Anda tão desolhada, mulher!...
Joana:
            _ Pois é... Tenho dores no corpo, não tenho nenhuma vontade de comer, quebrada…

Leopoldina:
            _ Ó D. Joana, mas a senhora sempre foi rija como o aço! Quando paria os filhos era um ai que lhe dava, sempre trabalhou, comeu e bebeu como um homem. É uma mulher de armas!

Joana:
            _ Lá o que tenho, Deus é que sabe. Agora que não é coisa boa, não é. (E prosseguiu meio encolhida na sua doença) _ Dói-me tudo, não posso ver a comida, sinto palpitações… Vou entrar que o meu Inácio está à minha espera. (Dirige-se para a cozinha)

Leopoldina:
            _ Vá com Deus, mulher, e não ande a malucar com coisas que não existem…

Na cozinha

(Já na cozinha, Joana sentiu-se mal)

Joana:
            Ai, Inácio, vem depressa que me está a dar a breca, vem depressa…( desfalece )

Inácio: (Vindo de outro compartimento da casa)
            _ Ó mulher, que flatos são esses, não entendo?
Joana:
            _ Eu não sou mulher de flatos, de achaques, ou diabo que o valha! (protestava) Quem pariu doze filhos como eu pari, sem um desejo, sem uma palavra que se ouvisse na rua, não é de flatos!
 Inácio: Anda comer que o teu mal é fome! ( Inácio senta-se, ao mesmo tempo que dá um jeito na mesa: muda o pão, a caneca do vinho, abre a panela e enche as malgas do caldo. Come e bebe um pouco. E continuou)
Olha que eu nunca me engano naquilo que eu digo…
Como a mulher não havia meio de se sentar, repreendeu-a)
_  Ó mulher, senta-te e esquece essas maluquices. Come o caldo e bebe uma pinguinha que te vai fazer bem. Enche-me esse bucho, mulher, que estás branca como a cal!

 ( Joana senta-se e come um naco de pão e diz. Pausa. Depois prossegue)



Joana:
            _ Ó homem, ando cá a malucar umas coisas…Até já me lembrou…Cala-te boca…( pega na malga do caldo e come umas colheradas)

 Inácio:
            _ O quê?
Joana:
            _ Que me fizessem qualquer bruxaria…
Inácio: ( Deixa de comer)
            _ Deixa-te de maluquices e vê se tens propósito! Só faltava mais essa!… Valha-te Deus!
Joana:
            _ Eu sei lá! Sinto-me tão cansada, tão moída…
Inácio:
            _ Já te disse que são flatos. Não é mais nada. Não há feitiços nenhum. O povo ignorante é que acredita nesse e outros disparates. Se pusessem os olhos nas pessoas de certa categoria… nunca se ouviu dizer que a senhora Fulana ou o senhor Sicrano andassem com o diabo no corpo. Só a gente que não tem instrução é que acredita em bruxedo. Palavra de honra! (diz em tom de descontentamento)

Joana:
            _ Diz-lhe que não. A Deolinda também começou  assim, que eram maleitas, que eram febres intestinais, que era sífilis, e vai-se a ver, tudo mandingas da Leopoldina.

Inácio:
            _ Ah!, Ah!, Ah! Ó mulher, coitada da Leopoldina! O poder dela é tanto como o meu! E que motivos deste tu à Leopoldina para te fazer mal?
Joana:
            _ A ela nenhuns.
Inácio:
            _Então, já vês…
Joana:
            _ Pois olha que não se me tira do pensamento…
Inácio:
            _ És teimosa!
Joana:
            _ Serei. O pior é o resto…Seco-me de dia para dia…

( Ainda na mesa a servir-se do que lá está, Inácio coça a cabeça)

Inácio:
            _ Que tu te estás a sumir, é bem verdade, mas a Leopoldina é que não é para aqui chamada!
Joana:
            _ Por incumbência da Gomes, homem. Tão certo como Deus estar no Céu!

Inácio:
            _ Lá vens tu com enredos, mulher! Trata de dormir, e amanhã vai ao Paliteiro que te venda sal amargo e toma-o. Isso são flatos ou é estômago sujo.

Joana:
            _ Como eu tive aquela pega com a Gomes e ela agora não sai de casa da Leopoldina, aqui-del-rei que ando enfeitiçada. Tenho a certeza! Até dou conta quando me estão a coser a andilha! Acordo de noite com os alfinetes cravados no corpo!

Inácio:
            _ Valha-te um burro, mulher! Reloucaste. Depois de velha, reloucaste!
Joana:
            _ Eu sinto! Eu sinto elas picarem o mono.
Inácio:
            _ Que mono?
Joana:
            _ Elas fizeram um mono de pano, e a bruxa faz malefícios, judiarias nessa figura da pessoa a desgraçar.
Inácio:
            _ Estás num lindo estado, sim senhor! E tão sã que tu eras do miolo!
Joana:
_ E é que dão cabo de mim, as coiras! Uma agonia, uns apertos no coração…
Inácio:
            _ Bem, se até amanhã não melhorares vou-te buscar o curandeiro da Azoia. Que hei de eu fazer! Assim é que não podes ficar. E que venha a Emília tratar de ti.
Joana:
            _ Vai lá chamar esse tal curandeiro.

(Inácio sai. Joana continua sentada a cismar e a comer. Depois entra o Curandeiro de Azoia e Inácio )

Curandeiro de Azoia:
            _ Ora bom dia! Esta é a desgraçada que está possuída pelo demónio?

Inácio: ( Chega-se junto ao Curandeiro e segreda-lhe ao ouvido, sem que a mulher deia por isso)

_ Não diga isso, homem!

Curandeiro:
- Ah, pois… Vamos, então,  ao que interessa. Em primeiro lugar, dinheirinho na mão, senhor Inácio. Não vá o Diabo tecê-las e a coisa dar para o torto, saio daqui de mãos a abanar. É o que eu sempre digo: “ Dá cá, toma lá” (Estende a mão e vira a cara para o lado enquanto o senhor Inácio lhe dá a paga)
Curandeiro:
_ Assim está melhor! Agora sim, vamos tratar da maleita. Vira, volta a virar, ( Dirige-se a Joana)
 D. Joana, você realmente tinha razão? Ai este sexto sentido das mulheres! ( pausa) São duas mulheres…
Joana:
_ Pois eu não te disse, Inácio, são aquelas duas malvadas…Seco-me de dia para…O meu Inácio não acredita em mim…
Curandeiro:
            _ Mas devia, pois a senhora está possuída pelo diabo que a está a secar…Eu sinto…Elas…elas fizeram um feitiço…oiço as malvadas a rirem-se de si …(começa a tremer como se estivesse a sentir a presença de algo sobrenatural. Depois abre os olhos e encara a D. Joana que olha para ele sem surpresa quanto ao que ele lhe vai dizer)
             
            _  Um trabalho feio, sujo…mas eu vou receitar-lhe uma garrafa deste milagroso licor, e vai ver que vai ficar rija que nem aço. Vou indo que já se faz tarde. Ainda tenho que pregar o sermão noutra freguesia…

(O Curandeiro entrega a garrafa, cheira o dinheiro e sai apressado)
            _ Este já está no papo, o resto são conversas! (Aparte)

(Inácio acompanha o Curandeiro. D. Joana toma o licor, mas de nada adiantou. Na cozinha Joana chama por Inácio que chega logo a seguir, queixando-se)
Joana:
            _ Inácio, estou cada vez pior! O licor do pantomineiro do curandeiro não fez nada. Bota-te à serra à casa da santa, se me queres viva! Leva-lhe uma camisa minha e conta-lhe tudo.
Inácio: (Aparte)
            _ Vou mas é à Vila consultar o Dr. Amaral. (Aparte) Santa! Santa estás tu da caixa dos pirolitos. Vai deitar-te que eu vou já ter contigo.
(Reclama o senhor Inácio para a mulher. Joana permanece na cozinha, enquanto o marido dá um jeito às cadeiras da mesa da cozinha. Nisto, Joana dá um grito)

Joana:
            _ Ai santo nome de Deus que eu morro! (Joana parece que vomita. Inácio vai em seu auxílio)

Inácio:
_ Ó mulher, vou dar-te uma pinga de chá de cidreira que está aqui na cafeteira.
(Joana, cheia de calores, começa a abrir a camisa que tinha vestida. Inácio dá-lhe o chá) Este chá de cidreira é remédio santo! Acalma, e deixa de malucar com sandices!
            (Joana bebe o chá e quando vai a pôr-se a pé sente-se novamente mal)

Joana:
_ Ai, que aquelas grandes putas atravessaram-me a alma! Ai! Que eu sinto-me estrafegada! Ai Jesus, que eu morro! Ai…


Inácio:
            _ Sossega, mulher, sossega! ( A tempo de agarrar  nela no seu regaço) _Valha-me Nossa Senhora! (A mulher ficara-se-lhe nos braços)
(Doido, sem um gemido que lhe abrandasse o desespero, correu para a rua, desvairado, à procura de um socorro impossível. Abriu a porta e, mal a puxou, caiu-lhe aos pés um mono de farrapos todo cravado de alfinetes e com um prego espetado no sítio do coração.

Inácio:
_ Afinal, não eram flatos, bem dizia a minha Joana!
(Exibe o mono com o prego pregado no lado do coração)

TORGA, Miguel _ Contos da Montanha, Publicações Dom Quixote.                      

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